A missão de Kardec
Aproximadamente aos dez anos, foi encaminhado a Yverdun, cidade da Suíça, a fim de completar seus estudos em uma escola-modelo da Europa, que funcionava em regime de internato, dirigida pelo célebre pedagogo Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827).
Aos dezoito anos, retornou à
França, fixando-se em Paris, centro da cultura mundial, onde predominava a
corrente filosófica do Positivismo, defendida por Augusto Comte. Rivail
dedicou-se à instrução e à educação durante aproximadamente trinta anos,
tendo sido, inclusive, diretor de escola e professor. Escreveu vários livros
didáticos sobre diversos assuntos, entre os quais, aritmética, gramática
francesa, química, física, astronomia e anatomia comparada.
Influenciado
pelas idéias de Pestalozzi, também escreveu livros sobre a reforma do ensino.
Mais tarde, foi compelido a deixar o magistério em virtude do regime
educacional implantado na época do imperador Napoleão I, que restringia a
liberdade de ensino. Em 1852, teve problemas de vista e quase ficou cego.
Estudou durante
trinta e cinco anos o magnetismo, adquirindo sólidos conhecimentos a
respeito. Exerceu, ainda, a função de contabilista e tradutor de obras
estrangeiras, uma vez que dominava outras línguas, além do francês, entre
elas, alemão, inglês, italiano e espanhol.
Zeus Wantuil e
Francisco Thiesen, na obra Allan Kardec, esclarecem que, aos 24 anos, sua
preocupação científica e seu caráter eminentemente positivo o fariam escrever
numa obra sobre Educação Pública: “Aquele que houver estudado as ciências
rirá, então, da credulidade supersticiosa dos ignorantes. Não mais crerá em
espectros e fantasmas, não mais aceitará fogos-fátuos por Espíritos”.
Foi, portanto,
como racionalista estudioso, avesso ao misticismo, que ele se pôs a examinar
os fatos relacionados com as “mesas girantes e falantes”, fenômeno que
eclodiria, mais tarde, na Europa, chamando a atenção do mundo inteiro (Obras
Póstumas, Feb, p. 265-276).
A esse respeito,
analisemos o pensamento transparente do próprio Kardec: “Tendo adquirido, no
estudo das ciências exatas, o hábito das coisas positivas, sondei, perscrutei
esta nova ciência (o Espiritismo) nos seus mais íntimos refolhos; busquei
explicar-me tudo, porque não costumo aceitar idéia alguma, sem lhe conhecer o
como e o porquê.”– (O Que é o Espiritismo, p. 79).
Aos vinte e oito
anos, casou-se com Amélie Gabrielle Boudet, também professora e escritora,
nove anos mais velha que ele. Não tiveram filhos, o que permitiu ao casal
dedicação intensa à nobre missão de educar.
O contato com os
espíritos
Aos cinqüenta
anos, o professor Rivail tomou conhecimento, pela primeira vez, da existência
das mesas girantes e falantes, por meio do Sr. Fortier (outro estudioso do
magnetismo). Certa vez, Rivail encontrou-se com um amigo (Sr. Carlot) e este
lhe contou a novidade: compareceu a uma reunião em que as mesas não apenas se
movimentavam, mas também se comunicavam.
Rivail não levou
a sério tal notícia, em virtude do temperamento brincalhão do informante.
Entretanto, ao avistar-se novamente com o Sr. Fortier, este lhe
confirma as observações do Sr. Carlot. Diante de tão incrível informação,
esta foi a reação “positivista” de Rivail: “Só acreditarei quando vir e
quando me provarem que uma mesa tem cérebro para pensar, nervos para sentir e
que possa tornar-se sonâmbula. Até lá, permita que eu não veja no caso mais
do que um conto da carochinha”. A maioria dessas reuniões, praticada nas
rodas sociais, era pública e de caráter leviano, em que as pessoas faziam
perguntas fúteis aos espíritos, com relação ao passado, ao futuro e aos fatos
corriqueiros da vida particular de cada um.
Levado pelo Sr.
Fortier a uma reunião privada, de caráter sério, na residência da Sra.
Planeimason, Rivail confirma o que lhe haviam dito. A princípio, Rivail,
apoiado nos estudos do magnetismo, considerou que o movimento das mesas
pudesse ocorrer por causa dos fluidos elétricos emanados do próprio corpo
físico, mas, posteriormente, verificou que os fenômenos provinham de uma
causa inteligente independente do médium.
Foi então que o
eminente professor passou a comparecer a essas reuniões, movido pelo espírito
de pesquisa, oportunidade em que formulava perguntas elaboradas por
antecipação, algumas de cunho filosófico e científico. Percebeu, então, que
nem todos os espíritos sabiam respondê-las, enquanto outros o faziam com uma
profundidade jamais vista. Deduziu, a partir destas observações, que a
simples morte física dos homens não os transforma em santos ou sábios. Eles
continuam a ser o que foram em vida, com suas virtudes e com seus defeitos.
Ante a
importância da magna revelação da Espiritualidade trazida à Terra, Rivail
exclamou: “Entrevi naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam
daqueles fenômenos, qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova
lei, que tomei a mim investigar a fundo. [...] Compreendi, antes de tudo, a
gravidade da exploração que ia empreender; percebi, naqueles fenômenos, a
chave de um problema obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da
Humanidade, a solução que eu procurara em toda a minha vida. Era, em suma,
toda uma revolução nas idéias e nas crenças; fazia-se mister, portanto, andar
com a maior circunspecção [seriedade] e não levianamente; ser positivista e
não idealista, para não me deixar iludir”.
Perto dos 50
anos, pela primeira vez, Rivail tomou conhecimento oficial da sua missão de
codificador da doutrina espírita, por meio de uma comunicação espiritual. Foi
na casa do Sr. Roustan, através da médium Japhet. O espírito, que se
autodenominou “Espirito de Verdade”, disse-lhe: “Confirmo o que foi dito, mas
recomendo-te discrição, se quiseres sair-te bem. Tomarás mais tarde
conhecimento de coisas que te explicarão o que ora te surpreende. Não
esqueças que podes triunfar, como podes falir. Neste último caso, outro te
substituiria, porquanto os desígnios de Deus não assentam na cabeça de um
homem.”
A missão de
Rivail foi confirmada por mais duas vezes, através de médiuns diferentes, em
ocasiões e lugares distintos. Assim que tomou consciência da gravidade do
chamado que ecoava do Mundo Maior, elevou uma prece ao Criador, mais ou menos
nestes termos: “Senhor! pois que te dignaste lançar os olhos sobre mim para
cumprimento dos teus desígnios, faça-se a tua vontade! Está nas tuas mãos a
minha vida; dispõe do teu servo. Reconheço a minha fraqueza diante de tão
grande tarefa; a minha boa-vontade não desfalecerá, as forças, porém, talvez
me traiam. Supre a minha deficiência; dá-me as forças físicas e morais que me
forem necessárias. Ampara-me nos momentos difíceis e, com o teu auxílio e dos
teus celestes mensageiros, tudo envidarei para corresponder aos teus
desígnios.”
A missão de
Kardec
Antes das
confirmações de sua missão, Rivail não estava muito motivado com o trabalho
que se lhe antepunha, pois não se sentia à altura de exercer tarefa de
tamanha magnitude, o que demonstra, mais uma vez, a humildade e a grandeza
moral do codificador. Nessa época, alguns amigos e intelectuais insistiram
para que aceitasse a tarefa. Eles, que já coletavam material há mais de cinco
anos, passaram-lhe cinqüenta cadernos com centenas de comunicações de
inúmeros espíritos, colhidas por meio de diferentes médiuns, que cabia a
Rivail estudar, classificar, coordenar, organizar e deduzir-lhes as
conseqüências. E assim o fez, continuando a freqüentar as reuniões mediúnicas
sérias, ocasião em que fazia várias perguntas, submetendo ao crivo da razão e
da lógica os ensinamentos dos espíritos. Quando se deu conta, estava
totalmente envolvido no projeto, época em que teve a inspiração de reunir
aquelas informações em livros, sendo o primeiro deles O Livro dos Espíritos,
em forma de perguntas e respostas, finalmente publicado em 18 de abril de
1857.
Faz-se relevante
mencionar que Kardec teve, a princípio, grande dificuldade de aceitar o
princípio da reencarnação, que não lhe passava pela idéia. Vejamos a sua
opinião a respeito: “Esta teoria [da reencarnação] estava tão longe do nosso
pensamento quando os espíritos no-la revelaram, que ela nos surpreendeu de
maneira estranha, porque, confessamo-lo com toda a humildade, o que Platão
havia escrito sobre esse assunto especial nos era totalmente desconhecido,
mais uma prova, entre mil outras, de que as comunicações que nos têm sido
dadas não refletem, absolutamente, a nossa opinião pessoal. A doutrina dos
espíritos acerca da reencarnação nos surpreendeu, pois; diremos mais:
contrariou-nos, porque lançava por terra nossas próprias idéias.”.
Por ser o seu
nome muito conhecido no mundo científico, em virtude dos seus trabalhos
anteriores, e podendo originar confusão, talvez mesmo prejudicar o êxito do
empreendimento de formular a codificação, adotou o pseudônimo de Allan
Kardec, nome que, segundo lhe revelara o seu orientador espiritual, ele
tivera em uma encarnação recuada, enquanto sacerdote druida.
Adotando o
pseudônimo de Allan Kardec, o Professor Hipollyte Léon Denizard Rivail deu
grande demonstração não somente de fé, mas igualmente de humildade,
considerando que seu nome civil era bastante conhecido e respeitado na
França, não somente em virtude de suas obras publicadas, mas também porque
descendia de antiga e conceituada família, cujos membros brilharam na
advocacia e na magistratura.
Na busca da
verdade, Kardec utilizou-se do método intuitivo-racionalista, divulgado por
Pestalozzi (1746-1827), na investigação dos fatos, considerando o valor da
análise experimental, através da observação e do uso do raciocínio, da
analogia, para daí se extraírem, por indução, os resultados e se chegar a
enunciados gerais. Dora Incontri, em sua obra Educação e Ética, elucida em
que bases se deu a metodologia utilizada pelo codificador: “Procedei do
conhecido para o desconhecido; do particular para o geral; do concreto para o
abstrato; do mais simples para o mais complicado; primeiro, a síntese, depois
a análise. Não a ordem do assunto, mas sim a ordem da natureza.”.
Kardec fundou,
em Paris, no dia 01 de janeiro de 1858, a Revista Espírita, palco de
maturação e divulgação das idéias espíritas, e, no dia 01 de abril de 1858, a
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, onde, durante mais de onze anos,
com o concurso de estudiosos e cientistas de renome, se dedicou à pesquisa e
ao estudo dos fenômenos psíquicos (Obras Póstumas, Feb, p. 294-295).
Passada a fase
de curiosidade dos fenômenos, o Espiritismo foi muito perseguido, de todas as
maneiras. Destaca-se, entre as perseguições, a inclusão das obras espíritas
no Index Librorum Prohibitorum e a queima de livros espíritas na Espanha,
pela Igreja Católica, no famoso episódio conhecido por Auto-de-fé de
Barcelona.
Kardec sabia,
por orientação da Espiritualidade Maior, que não teria tempo nem saúde para
dar seqüência à imensa tarefa de divulgação da doutrina espírita e que outros
trabalhadores valorosos continuariam o seu empreendimento. Ele estava
consciente, também, de que, se quisesse aprofundar o trabalho que começou,
necessitaria mesmo de uma nova encarnação. As leis naturais teriam que se
cumprir sem privilégio algum para ele.
Depois de
intensa atividade, à qual se dedicou com amor, lealdade, afinco e esforço
heróico à causa, Allan Kardec desencarnou com 65 anos incompletos. O
desenlace aconteceu em Paris, em 31 de março de 1869, quando estava
trabalhando nos preparativos para mudança de endereço. Ao atender um
caixeiro-viajante, que estava comprando um número da Revista Espírita, caiu
fulminado por um aneurisma cerebral (acidente cardiovascular). Narram os seus
biógrafos que o desenlace do mestre de Lyon ocorreu de forma bastante serena.
O corpo do
codificador foi sepultado no Cemitério Montmartre, em Paris, na França.
Durante o sepultamento, Kardec foi aclamado pelo astrônomo e escritor francês
Camille Flammarion (1842-1925) como o “bom senso encarnado”, devido à sua
grande inteligência, imparcialidade, discernimento, coerência, zelo e
equilíbrio emocional que sempre orientou a sua vida particular e,
especialmente, na condução da magna tarefa da codificação da doutrina
espírita.
Posteriormente,
numa homenagem dos amigos mais íntimos, seus restos mortais foram
transferidos para o Cemitério de Pere-Lachaise, conhecido como “Cemitério do
Leste”, na mesma cidade, onde foi construído, em granito bruto, um dólmen
(monumento ao estilo dos costumes dos povos druidas, com os quais partilhara
uma de suas encarnações), com a seguinte inscrição em seu pórtico, que bem
resume a doutrina espírita: “Nascer, morrer, renascer ainda, progredir
sempre, tal é a lei.” Este monumento encontra-se, até hoje, no mesmo local,
aberto à visitação do público.
Sem dúvida, o
conhecimento da biografia dos grandes homens auxilia muito no entendimento e
na interpretação de suas obras, que invariavelmente recebem grande influência
do meio.
Publicado na Revista Cristã de Espiritismo, ed. 44.
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terça-feira, 4 de setembro de 2012
A missão de Kardec
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