Antropólogo
de Botucatu revela o pouco conhecido mundo dos hospitais espíritas, nos quais a
medicina convencional divide espaço com a doutrina de Allan Kardec, com práticas
como passes e sessões mediúnicas.
Pablo
Nogueira pablodiogo@reitoria.unesp.br
Durante
três anos, o antropólogo Rodolfo Puttini, professor do Departamento de Saúde
Pública da Faculdade de Medicina da Unesp em Botucatu, acompanhou o dia a dia
de um hospital espírita no interior de São Paulo. Nesse lugar híbrido, a
medicina convencional, com seus equipamentos, medicamentos e profissionais
divide espaço com a doutrina espírita, com seus médiuns, passes, fluidos etc.
Pelos serviços médicos convencionais que presta à população, recebe recursos do
Sistema Único de Saúde (SUS) e não pode discriminar a religião de quem passa
por sua porta. Mas é pelo tratamento espiritual que oferece, em caráter
complementar e baseado na doutrina de Allan Kardec, que atrai tantas pessoas,
muitas das quais vêm de longe, até de outros países da América do Sul.
Hospitais
espíritas existem no Brasil desde 1950, mas cresceram muito em número nos
últimos 30 anos, na esteira do movimento antimanicomial, que promoveu uma
reorganização da assistência psiquiátrica, no sistema público de saúde, a
partir da década de 1980. Puttini mergulhou nesse mundo em que a fé e a ciência
convivem (não sem atritos) para fazer sua tese de doutorado, que deu origem ao
livro Medicina e espiritualidade no campo da saúde, publicado pela Editora Annablume
em maio.
Nesta
entrevista, o antropólogo explica como funciona um hospital espírita e descreve
os conflitos que observou entre os kardecistas e os profissionais de saúde
adeptos de outras religiões, entre eles muitos evangélicos. Puttini analisa
ainda o espaço cada vez maior que o SUS está destinando a linhas alternativas
de tratamento, como homeopatia e acupuntura, e vê nisso um caminho que pode
aproximar a prática clínica da dimensão espiritual, que é tão importante para
os pacientes.
As imagens que
ilustram estas páginas são do fotógrafo Hermínio Nunes, que depois de ser
atendido em um hospital do gênero, fez um ensaio fotográfico sobre o tema,
publicado em 2008 no Diário Catarinense.
Rodolfo Puttini Um hospital espírita é uma qualificação para
identificar um espaço de saúde distinto, híbrido. No interior dessas
instituições médicas, terapias espirituais são praticadas por médicos ou enfermeiros
convertidos à visão espiritualista do homem, geralmente praticantes da doutrina
de Allan Kardec, o fundador do Espiritismo.
UC Por que estudar os
hospitais espíritas?
Puttini O principal objetivo foi desvendar as razões
sócio-históricas e institucionais desses hospitais, organizados no Brasil desde
a época em que a doutrina espírita foi acolhida por médicos como alternativa e
também como forma de resistência à ciência. Durante muito tempo essas práticas
terapêuticas foram perseguidas pela polícia. Mas conseguiram se preservar
atuando de modo organizado, paralelamente às instituições criadas pela medicina.
Formaram uma tradição médica espiritualista que se institucionalizou em nossa
sociedade.
UC No que eles se diferenciam dos hospitais
laicos?
Puttini O hospital espírita que estudei possui os
mesmos equipamentos médicos de um hospital geral pequeno, médio ou de grande
porte: quartos, leitos, enfermarias, consultórios, em alguns casos até UTI, onde
atuam profissionais de saúde. As terapias espirituais são oferecidas como recurso
complementar às terapias médicas convencionais. Há também palestras, passes e
água fluidificada, coisas que são tradicionais nos centros espíritas. E há reuniões
mediúnicas que funcionam como um recurso diagnóstico e terapêutico para as
doenças espirituais. O tratamento médico costuma estar vinculado do tratamento
espírita, mas nem sempre.
UC A quem esses
hospitais atendem? Somente a espíritas?
Puttini Eles
são reconhecidos pelo poder público como entidades filantrópicas e de benemerência
social. Funcionam desde os anos 1950, mas sua atuação cresceu entre as décadas
de 1970 e 1990, principalmente no Estado de São Paulo. Ganharam notoriedade com
o movimento antimanicomial, que promoveu uma gradual reorganização das
instituições psiquiátricas no país a partir dos anos 1980. Esse movimento levou
à redistribuição de pacientes por uma rede de instituições de pequeno e médio
porte no interior paulista, entre as quais os hospitais espíritas. Hoje, os
leitos que eles têm destinados ao atendimento e serviços ambulatoriais são
usados preferencialmente para os pacientes do SUS. No caso do atendimento aos
adeptos da religião, esses devem ser vistos primeiramente como cidadãos
brasileiros, cujos direitos estão assegurados por lei para usufruir os
equipamentos de saúde daquele município. Atendem também a pacientes de outros
países da América Latina, como constatei na pesquisa.
UC Na história do
movimento espírita no Brasil existem alguns nomes famosos ligados a temas da
área médica. Um deles é o médico Bezerra de Menezes, que foi uma liderança
espírita do final do século 19. Outro é o médium Chico Xavier, que tem vários
de seus livros atribuídos a um suposto médico, André Luiz. Que impacto essas
personalidades tiveram nesta aproximação entre medicina e espiritismo que vemos
no Brasil?
Puttini A literatura espírita influiu para a conformação
da ideologia de uma “ciência espírita”. Mas foi com a proposta de uma medicina
espiritualizada que os adeptos da religião mais se aproximaram de uma “medicina
científica espírita”. Essa medicina surgiu com uma proposta de Bezerra de Menezes,
que estruturou os ideais de uma psiquiatria espiritualizada, que levava em conta
a doutrina dos espíritos. Eu descrevo no livro esse percurso da cosmovisão espírita,
incluindo Chico Xavier, que se desdobra na cosmologia médico-espírita. Obteve-se
dos escritos psicografados de André Luiz um norte para a cosmologia “científica”
médico-espírita lançar-se institucionalmente, como organização corporativa
médico-religiosa. Nessa nova fase brasileira do espiritismo, a revelação
religiosa organizada por Allan Kardec ganhou aspectos mais apurados de
cientificidade na ordem médica.
UC Parte de sua tese
consistiu numa pesquisa etnográfica num hospital espírita no interior de São
Paulo. Você viu algum caso de cura?
Puttini A fim de obter uma descrição etnográfica das
terapias espirituais no hospital espírita, acompanhei o desenrolar de um caso
de cura de um interno de nome Silva. Embora não tenha presenciado a cura desde
a data de sua ocorrência, observei o desdobramento de uma indubitável atmosfera
de conflito de valores, religiosos e científicos.
UC Como assim?
Puttini Os profissionais de saúde, em sua maioria,
diziam que a cura de Silva foi resultado dos cuidados técnicos da enfermagem.
Teria sido essa a causa de sua recuperação, após ele passar sete meses internado
na UTI, com inanição. Os espíritas, entretanto, acreditavam que [o espírito de]
Silva havia se manifestado numa reunião mediúnica e, depois de ter sido
orientado a não praticar o suicídio, prometeu sair por si mesmo do estado de inanição,
e deixou a UTI no dia seguinte. Estava instalado um conflito de valores camuflado
durante anos, por meio de um caso de cura, ora descrita como religiosa, ora
como biomédica. Nem todos os profissionais adeptos de outras crenças, como católicos
e protestantes, acreditavam na cura espiritual de Silva, porque não partilhavam
de dogmas como a reencarnação ou a manifestação dos espíritos. O caso transformou-se
em um bem simbólico de negociação nos conflitos e consensos desenvolvidos
durante a negociação de um espaço terapêutico espírita.
UC No livro, você
ressalta o fato de que nem todos os trabalhadores e funcionários do hospital
são adeptos da religião espírita. Você identificou conflitos devido a
diferenças de crenças?
Puttini No hospital espírita, os dogmas do espiritismo
influem sobre membros da comunidade hospitalar, como funcionários, dirigentes,
profissionais de saúde, pacientes, familiares etc. Mas nem todos são espíritas.
Aliás, constatei na pesquisa que a maioria dos funcionários era principalmente
de evangélicos. Não sei dizer o porquê desse paradoxo. Realmente parecia estranha
a existência de tantos funcionários com convicções religiosas diferentes do
espiritismo, mas é o que ocorria. Essa configuração resultou em conflitos
profissionais com a terapêutica espírita, quando aplicada fora dos espaços
destinados às terapias espirituais. Em uma situação, algumas funcionárias,
denominadas pajens, receberam a orientação de fornecer água fluidificada aos
pacientes em seus leitos. Elas eram, em sua maioria, evangélicas. Não
obedeceram, em função de suas crenças religiosas.
UC Certos conceitos que são importantes para os espíritas, como
reencarnação, mediunidade, fluidos etc. são totalmente ignorados pela medicina
de base científica, que adota uma abordagem “materialista” do ser humano. Como
as duas cosmovisões se articulam no hospital espírita? Não há conflitos?
Puttini Certamente, as cosmovisões materialista e
espírita são conflitantes em qualquer espaço terapêutico da saúde, porque são
conflitantes as visões de mundo que as pessoas carregam sobre a vida, a saúde, a
doença e a morte. Usando ainda como exemplo o caso Silva, pode-se afirmar que aqueles
com convicções médicas materialistas não aceitavam a cura espiritual, e não aceitariam
em quaisquer outras circunstâncias. Mas
também tive a oportunidade de encontrar pontos de consenso nas visões de mundo
dos vários profissionais de saúde, por exemplo, em relação ao conceito de vida.
Na cosmovisão materialista, a vida segue o conceito científico, de vida biológica
tão somente. Não tenhamos dúvidas que as normas biológicas podem controlar a
normalidade e a patologia dos corpos humanos, cujos parâmetros determinam uma
medicina científica. Não tenhamos dúvidas do progresso da biomedicina. Entretanto,
não me parece que a clínica médica deva ser incentivada para a prática exclusivamente
biomédica, em que todo o processo, do diagnóstico à terapêutica, é padronizado
e normatizado pelas indústrias farmacêuticas, que são conglomerados interessados
no conhecimento da saúde com base nas doenças. Na verdade, o que vemos na
ideologia científica é a crença de que a ciência é a única forma de explicação
para os fenômenos do mundo. A única cosmovisão que pode e deve dar conta da
totalidade dos fenômenos da natureza. O dogma principal na cosmovisão materialista
é que tudo se explicará um dia, dadas as circunstâncias e condições materiais
da natureza dos corpos, tão somente. Essa postura se iguala, no meu entendimento,
a um estado de espírito dogmático, como ocorre no estado de fé religiosa, onde
a crença se materializa por certos preceitos rituais.
UC Como esses hospitais
estão em atividade em nosso país há mais de cinco décadas, pode-se dizer então
que o Brasil está na vanguarda em termos de aproximação entre a medicina e a
espiritualidade?
Puttini Sim e não. Nos Estados Unidos existem
instituições como o Center for Spirituality, Theology & Health, da Duke University,
que dedicam recursos financeiros e intelectuais para pesquisa científica dos
fenômenos relacionados ao tema medicina
e espiritualidade. Já nas escolas médicas brasileiras, os assuntos de
religiosidade e espiritualidade são tópicos pouco valorizados no currículo
médico ou na formação dos profissionais de saúde. Podemos afirmar que, sim, há
uma vanguarda em termos da cosmovisão espírita. Entretanto, haverá grande
resistência se a corporação médico-espírita exigir um espaço educacional nas
escolas médicas brasileiras a fim de abordar uma educação médica diferenciada,
que inclua as nosologias [parte da medicina associada à classificação das
doenças] espiritualistas entre os conhecimentos da psicologia e da psiquiatria.
UC Você acredita que
esta combinação de diferentes metodologias de atendimento que se vê nos
hospitais espíritas poderia ser adotada em outras instituições públicas de
saúde?
Puttini Vejo
uma tendência, no sistema de saúde brasileiro, de incorporação de diversas
abordagens e racionalidades médicas nos espaços das unidades básicas de saúde.
Isso inclui medicinas alternativas e integrativas, por exemplo, a homeopatia e
a acupuntura. Mas deve-se atentar para o longo percurso que foi necessário para
o reconhecimento social dessas práticas integrativas. Há também um interesse
decisivo por parte da academia em estruturar a oferta desses serviços com base
nos princípios do SUS, por meio das
escolas médicas e dos programas de saúde coletiva. Acredito que as
possibilidades de implantação dos espaços terapêuticos híbridos são reais nessa
nova configuração de atenção à saúde. Na conclusão do livro até sugiro uma
forma de superação do complexo conflito socioinstitucional: distinguir o uso
conceitual entre assistência espiritual, religiosidade e espiritualidade.
Revista Unesp Ciência
Julho/2012 - Ano 3 - nº32
Um comentário:
Está matéria foi uma colaboração de Sandro Garcia.
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