Costumamos dizer ou achar que apenas coisas pequenas não
ferem nossos sentidos ou, quando muito, não afetam os interesses de uma coletividade.
Mas existem coisas de grande porte que igualmente conseguem passar
despercebidos ou sem provocar as reações que lhes seriam proporcionais.
Recorrendo à história do Cristianismo observamos, com pesar,
que isso já ocorreu, sem maiores reações, pelo menos no momento em que tal se
dava.
Jesus implantou na Terra o verdadeiro Cristianismo, sem igrejas,
ritos e dogmas, mas rapidamente sua base foi distorcida pelos interesses
políticos de então, de onde surgiram os enxertos das práticas estranhas à moral
estabelecida.
Pouco mais de 1.200 anos depois, o bem amado Francisco de
Assis discorda da suntuosidade da Igreja e parte para a base da humilde
vivência cristã. Sua dignidade e sua forma natural de viver incomodou aos
superiores da Igreja, que pretenderam desestabilizá-lo, mas sua força moral foi
maior. Ainda assim, pouco depois de sua desencarnação já era construída uma
basílica em sua homenagem, o que destoava completamente de seus ideais de amor à
Natureza, humildade e simplicidade em tudo.
Mais de um milênio e meio após Jesus surgiu a figura de
Martinho Lutero trazendo sua Reforma, através da qual procuraria restabelecer
alguns padrões do primitivo cristianismo – Calvino, na mesma ocasião, tentou,
sem conseguir, trazer o Cristianismo à sua forma nascente. Mal Lutero
desencarnou seus primeiros seguidores começaram a reformar a Reforma, moldando-a
fora da base por ele elegida em suas 95 teses.
Tudo isso demonstra, com viva clareza, que, por maiores e
mais violentas que sejam as mudanças, elas seguem indiferentes à base em que
deveriam se sustentar e mesmo quando surge alguém com porte moral suficiente
para redirecionar seu modelo, nada parece ser suficiente para fazer ver e
corrigir o que é preciso.
Embora a história registre tudo isso, estranhamente optamos
pelo “deixa como está”, ainda quando nesse barco estejamos todos, soçobrando igualmente.
Se assim não fosse, quem diria que o Espiritismo passaria por algo semelhante?
Afinal, em abril de 2012 completamos apenas 155 anos de seu surgimento, o que,
historicamente, é muito pouco tempo!
Allan Kardec foi de uma precisão e uma clareza irreproxável
na codificação dessa Doutrina. Apesar disso, alguns pontos relevantes vêm sendo,
sistematicamente, abandonados, esquecidos, mal colocados ou mesmo desvirtuados.
A pergunta que fica no ar é: qual o intuito disso? Que
vantagens advêm desse estado de coisas e, se elas existem, a quem tem
interessado?
Sem considerar qualquer ordem, examinemos apenas alguns
pontos.
Magnetismo
O Magnetismo é colocado por Kardec como uma ciência irmã do
Espiritismo, ciência essa que deu base para que o Espiritismo se expandisse e
afirma, entre outras coisas, que Magnetismo e Espiritismo são uma única e só
ciência (questão 555 de O Livro dos Espíritos) e que se tivermos que ficar fora
da Ciência do magnetismo, nosso quadro ficará incompleto (Revista Espírita, março
de 1858, artigo Magnetismo e Espiritismo).
Naturalmente surge a pergunta: o que temos feito com o
Magnetismo? – Aplicamos passes nas Casas Espíritas, é a resposta comum. Mas
será que passes, aplicados como têm sido, é a própria ciência do magnetismo? E quando,
achando pouco, ainda o reduzimos a um simples repetir de movimentos ou, o que é
pior, ensinamos que as mãos devem estar estacionadas sobre a cabeça do enfermo
e enfatizamos que esse é o verdadeiro passe espírita, estaremos concordando com
a base kardequiana? A quem se presta esse reducionismo distorcido e ineficaz?
Que vantagens temos obtido com isso? E os casos graves, que
pedem providências igualmente graves, como ficam?
Sonambulismo
Outro ponto: o sonambulismo. O que foi feito dele?
Discute-se muito que “A” não deveria ter deixado o Espiritismo, que “B” não
poderia agir como agiu, que “C” está inventando novidades, mas o que fazer se a
base está sendo esquecida, menosprezada mesmo? Projeciologia, Apometria, Desdobramentos,
Experiências Fora do Corpo são filhos desse abandono à base. E quem sai
perdendo com isso?
O que diz o silêncio dos que deveriam defender, se pronunciar,
dar prosseguimento à obra que devemos vivenciar? Não seria hora de falarmos e
pedirmos respostas em vez de continuarmos silentes?
Dupla vista, êxtase, letargia
Dupla vista, êxtase, letargia foram outros pontos abordados pelos
Espíritos na Codificação, mas que estão totalmente esquecidos, mesmo quando
Allan Kardec sugeriu que eles deveriam ser estudados, analisados e exercitados.
Não é interessante perceber que estamos todos acostumados a
essas supressões sem que nos perguntemos a razão ou nos manifestemos no sentido
de rever tais procedimentos?
Animismo
Animismo. No meio espírita surgiu como deveria ser, ou seja,
é a ação do espírito pela própria alma (só para lembrar, Allan Kardec define
alma como sendo o Espírito encarnado), mas de tanto lhe imputarem o sentido de
embuste, atividade consciente ou inconsciente de falsidade na identidade de um
pretenso espírito comunicante, hoje mais parece sinônimo de palavrão do que
natural e promissora faculdade humana. Acusar algum trabalhador de produzir
fenômeno anímico é tido por aquele como um insulto sem propósito. Só que assim
não deveria ser. O Espírito Emmanuel, pela mão de Chico Xavier, elegeu,
repetidas vezes, a expressão “faculdade medianímica”, no lugar de faculdade mediúnica,
por reconhecer a dificuldade, senão a impossibilidade, de uma mediunidade pura,
já que o fenômeno se dá sempre pelo filtro do transmissor da mensagem e este,
encarnado, é, por princípio, anímico. Ora, se a deturpação da palavra animismo
foi sendo infiltrada ao longo do tempo e hoje sua forma falsa é de uma
aceitação quase absoluta, podemos pensar um pouquinho só e perceberemos que ele
foi subtraído do Espiritismo – e, com ele, uma vasta, rica e indispensável bibliografia.
Observemos, porém, que o magnetismo é animismo puro, assim como algumas faculdades
ditas mediúnicas – vidência, ectoplasmia, transporte, etc. Sendo assim, qual a razão
dessa distorção?
Intrigante perceber que, de forma direta ou indireta, o
magnetismo parece estar sempre em cheque...
Evocações
E para não me estender demais, só mais um pontinho. O Livro
dos Médiuns, subtitulado “guia dos médiuns e dos evocadores”, está começando a
sofrer mutações. A primeira delas parece inofensiva: retirou-se, sem se
explicar as razões, seu sub-título. Por quê? A resposta parece simples: desde
muito tempo há quem queira surrupiar a possibilidade das evocações, como se isso
fosse um pecado ou um risco mortal ou, ainda, algo condenado pelos Espíritos
Superiores. E se alguém tenta reverter essa extirpação e advoga que Allan
Kardec evocava, a resposta já está pronta: “mas isso era apenas para ele, por
conta de sua missão”. Ora, se esta resposta está correta, então Kardec falhou
redondamente quando deu o sub-título ao Livro dos Médiuns e, pior ainda, deixou
impresso um capítulo inteiro (o de número 25) nessa obra tratando judiciosamente
das evocações. Convenhamos há um estranho interesse em se suprimir essa
possibilidade dos seguidores do Espiritismo. Fica no ar, mais uma vez, a
questão: a quem isso interessa? Que razões se escondem sob tal desejo? De que
temem sejam os Espíritos indagados?
São muitas questões em aberto, muitas mesmo. E todas
convergem para um mesmo ponto: a Doutrina Espírita está sendo delapidada em sua
base, de uma forma constante, persistente e grave.
Mas para que não se imagine esteja eu atirando pedras em
multidões ou girando metralhadoras que cospem fel a esmo, posso até aceitar o
argumento de que uma muito sutil e inteligentíssima atividade dos chamados planos
inferiores venha urdindo tudo isso e nos envolvendo a todos, indistintamente e há
longo tempo, sem que tenhamos sequer avaliado para onde estamos caminhando.
Sendo assim, já é hora de acordarmos. Não temos o direito de permitir que
tamanha desconfiguração prossiga, levando-nos para um ponto de difícil retorno e
de complicadas consequências.
Não me sinto nem me considero melhor observador do que
qualquer outra pessoa ou Espírito, mas, por favor, quem tiver explicações
razoáveis que justifiquem o que ocorre em nossa Doutrina e que essas razões
deixem claro que tudo está correto e que o Espiritismo de Allan Kardec e dos Espíritos
Superiores pede essas alterações, repito, por favor, me apresente, pois o meu
maior desejo é que sejamos espíritas de fato e de direito e não apenas de
aparências e acomodações. Entretanto, se essas razões, explicações,
justificativas ou desculpas em nada comprovam a necessidade de tão cruéis e
infelizes alterações, que nos unamos todos para reverter o que é urgente... ou deixemos
que o tempo nos convide a vertermos escaldantes lágrimas de arrependimento num
futuro muito próximo.
Não nos enganemos: esse trabalho não é nem pode ser
individual.
Francisco de Assis e Martinho Lutero demonstraram que é
preciso muito mais. Ou surgem forças que se empenhem na restauração dessa base,
já, ou permitiremos que o Espiritismo se desestabilize e, modificado na base,
nos arremeta ao ostracismo a que já fomos lançados outras vezes, quando vivíamos,
em etapas reencarnatórias pretéritas, sob outras denominações, arcando com todas
suas infelizes consequências, posto que agora podemos falar e agir sem termos
fogueiras ou circos para nos trucidar, crucificar ou expoliar.
JACOB MELO
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